terça-feira, junho 10, 2014

A edição ingrata e o talento do António



Há reportagens assim.
Por vezes, baralhamos mil vezes a galeria de fotografias disponíveis na esperança de que, à décima passagem, algo tenha escapado – a imagem improvável que vai salvar a reportagem, vai manter a reputação da revista, vai atrair o leitor para as nossas páginas e motivá-lo a recordar-se da reportagem para sempre. No processo, amaldiçoamos silenciosamente os homens do campo, os fulanos que saem para a rua de máquina na mão para congelar o tema da reportagem num instantâneo revelador. “Porque não deu um passo mais para a frente?”; “Porque não recuou?”; “Porque não tentou outra posição, outra lente, outra iluminação?”. No conforto da redacção, longe dos imponderáveis do campo, todas as fotografias mágicas parecem possíveis.
Pontualmente, porém, sucede o contrário. À primeira passagem da galeria de imagens, emergem possibilidades fantásticas de ilustração. Uma, duas, três fotografias captam tudo o que queríamos contar. Dispensam legendas e explicações. São metonímias perfeitas da história que decidimos relatar no momento já distante em que a ideia original brotou. Lembro-me sempre nestes momentos do que escreveu a controversa escritora Anaïs Nin que, para mal dos seus pecados, herdou um nome próprio infeliz e uma tendência incontrolável para redigir diários íntimos. «Tudo nasce do excesso. A grande arte nasceu do grande terror, das grandes inibições, das grandes instabilidades – forma com eles o equilíbrio indispensável.» [cito de memória]· É, pois, de excesso, de abundância que falamos agora.
Há alguns meses, o António Luís Campos propôs-nos uma história formidável. Graças à extraordinária cooperação de António Candeias, do Laboratório de Conservação e Restauro José de Figueiredo, e dos conservadores-restauradores Miguel Mateus e Teresa Reis, tínhamos acesso ao trabalho de investigação desta equipa em torno das representações pintadas de Afonso de Albuquerque, segundo vice-rei português na Índia. Não quero estragar a leitura a ninguém [disponível aqui, já agora], mas a obra foi socialmente construída e reconstruída sucessivamente desde o século XVI, ao sabor da ideologia de cada época e dos preconceitos dos seus agentes. No léxico de um editor, a história tinha todos os ingredientes: uma figura histórica, um mistério, ciência de ponta, espiões, uma invasão e um quadro que ora tinha barbas brancas, ora as perdia por soberba de um político.
Como sempre acontece nesta casa, debatemos intensamente as possibilidades visuais. As reportagens de laboratório são terríveis. No ambiente descontaminado das pipetas e bicos de bunsen, das paredes brancas e microscópios, todas as fotografias parecem iguais. Com a malícia que lhe é característica, o António assegurou que traria fotografias diferentes. E, na verdade, mostrou-se fiel à palavra dada.
Voltamos aos excessos da Anaïs Nin. Logo à primeira passagem da galeria de imagens disponíveis, saltaram à vista estas duas extraordinárias representações de tudo o que queríamos dizer. Em duas composições, o António mostrava o quadro que chegara a Lisboa em 1953 já repintado por Gomes da Costa na Índia com amplas liberdades criativas, o quadro que a equipa de João Couto descobrira com exames radiológicos no MNAA e indícios da pintura original que lhes estava subjacente.
Tivemos de optar – espero que bem. Ficou na maqueta a imagem enigmática com todas as representações conhecidas penduradas numa parede de luz, enquanto Miguel Mateus anotava diligentemente os contratempos sofridos pela obra; ficou pelo caminho a imagem tecnológica, captada com um iPad, expressando igualmente as diferentes fases do desenho de Afonso de Albuquerque (que até pode não ser o próprio, pois essa averiguação deverá agora ter lugar na Galeria dos Vice-Reis em Goa).
Por sobreposição de compromissos, não vou poder participar na palestra do António Luís Campos no Porto, no próximo dia 12, na Reitoria da Universidade. Celebram-se ali dez anos (quase 11) de colaboração do António com a edição portuguesa da National Geographic, o que vale por dizer que são dez anos de dilemas como este. De escolhas entre o bom e o óptimo. De materiais estupendos por vezes excluídos somente para evitar redundâncias no nosso processo de story-telling.
Tem-se falado muito em selecções nacionais durante estes dias de antecipação do Mundial. O António estará seguramente na minha selecção nacional dos melhores.
Era isto que eu diria na 5.ª feira, na Reitoria da Universidade do Porto, se tivesse oportunidade.

1 comentário:

Luisa Paiva Boléo disse...

Obrigada pelas informações, mas agora preciso de ilustrar um debate sobre Afonso de Albuquerque e não sei qual é o autêntico.
Podem-me ajudar
Obrigada
Luísa Paiva Boléo