terça-feira, setembro 03, 2013

Os jornais de chuteiras nos anos trinta


Arquivo fotográfico do Jornal "O Século", ANTT
http://digitarq.dgarq.gov.pt/viewer?id=1019553

Aproxima-se um jogo decisivo da selecção nacional. Noutros estabelecimentos, vai ler todo o tipo de prognósticos sobre as probabilidades de vitória, a influência do clima, o espírito guerreiro dos matarruanos de Belfast, a influência da sorte ou as previsões do bruxo de Fafe. Aqui, proponho-lhe outro exercício – um esforço de imaginação.
(Não lhe peço para fechar os olhos porque, convenhamos, seria estúpido e perderia o resto do texto!) Mas venha comigo à década de 1930.
Os jornais, colossos de receitas e de circulação, começam aos poucos a ser minados pela rádio, mais democrática, que chega a qualquer lar e não requer literacia nem a compra de qualquer edição. É gratuita e o seu charme espalha-se por milhares de casas portuguesas como um vírus contagioso.
Em Lisboa e no Porto, os grandes jornais procuram respostas. O futebol é a solução óbvia, pois cativa milhões de pessoas. A selecção dá os primeiros passos. Começou a disputar jogos em 1921. Aliás, perde-os regularmente e com estrondo, para grande espanto da nação. A alma portuguesa, a raça dos Cabrais, as ínclitas gerações não resistem à passagem da fronteira. Mas pouco importa. Para os jornais, a selecção é a pátria de chuteiras, na feliz expressão de Nelson Rodrigues.
De acordo com "Jornais Diários Portugueses do Século XX", de Mário Matos e Lemos (2006), em 1928, no espaço de poucas semanas, o “Diário de Notícias” e “O Século” inventam um novo serviço prestado aos leitores (os marketing wizzs chamar-lhe-iam uma diversificação de plataformas). Olhe novamente para a imagem no início deste texto. Data de 1936 e parece mais um ajuntamento no Rossio, em Lisboa, palco de mil manifestações e protestos no início do século. A multidão comprime-se. Os carros circulam com dificuldade. Os eléctricos sufocam face à massa compacta. O mar de chapéus de coco não avança nem recua. Na verdade, todos aqueles homens (desafio-o a encontrar uma senhora na imagem) estão parados, imóveis, em sobressalto. A selecção joga com a Áustria e a sucursal de “O Século” transmite o jogo por altifalante, com base nos despachos emitidos pelo seu repórter no Estádio do Lima, no Porto, que os passa a um rapaz-estafeta que, por sua vez, corre até ao posto telefónico mais próximo e informa os colegas de Lisboa.
Mais acima, na Avenida da Liberdade, há outra multidão, presa às mesmas notícias, mas emitidas de outra forma pelo DN. Mais moderno, este instalou um placard eléctrico na fachada do jornal, com mais de mil lâmpadas, que acendem e apagam consoante as incidências do jogo. Para anunciar as peripécias da bola, o jornal acciona as lâmpadas e a multidão entra em transe, à espera da mensagem escrita que virá de seguida. Um golo? Uma lesão? Informação do intervalo ou do fim do jogo? As notícias de época descrevem comoções. Desmaios. Desfalecimentos. Não é para menos.
Portugal volta a perder um jogo, desta vez por 2-3.

PAULO BENTO
Prometi-lhe um exercício de imaginação, que não ficou esquecido. Avançamos dois anos, até 1938.
Portugal já perdeu com a selecção suíça em Maio por 2-1, mas a esperança futebolística é como a minha fé na roleta: renova-se todas as semanas. Há novo desafio marcado para Lausannne. Vão Azevedo, Pinga, Peyroteo e Gaspar Pinto. Os melhores dos melhores. A flor de uma geração. Desta vez, é que será.
Pujante, “O Século”, que “dá ao desporto o mais desinteressado apoio”, preparou nova novidade, antecipando o advento da televisão. O jornal de João Pereira da Rosa encomendou ao conhecido “operador Leandri, técnico de grande visão”, a filmagem do jogo. Leandri tem apenas uma câmara, num ponto fixo distante do relvado, mas o episódio marca a emergência da imagem animada no nosso quotidiano desportivo. E o jornal contratou o melhor, o homem que filmou os astros brasileiros no Campeonato do Mundo de 1934.
"O Século", 08/11/1938
(a partir de microfilme da Biblioteca Nacional)

No entanto, as imagens demoram mais de dois dias a chegar da Suíça. Vêm no mesmo hidro-avião das fotografias que o jornal usou no dia 8 de Novembro para ilustrar a crónica. Durante a partida, repete-se a rotina. O Rossio lotado. O mar de chapéus e gabardinas, alheios à chuva, presos ao único altifalante da praça, que transmite secamente informação de quinze em quinze minutos. A dada altura, a multidão imobiliza-se. Ecoa um som de estática no altifalante, prenúncio de novidade. Uma voz seca, impessoal, neutra, rompe o silêncio.
“.... Informação de Lausanne.... 48 minutos.... Golo da Suíça.....”
Minutos depois do acontecimento propriamente dito, lá, bem longe, nas montanhas helvéticas, as palavras gelam milhares de portugueses no Rossio e na Constituição. Até final, por mais preces que sejam lançadas contra o aparelho metálico, não chega a informação salvadora. Toda aquele gente seguirá para casa, amorfa, murcha. Para a próxima é que será.
Agora, imagine o nosso seleccionador. Pense em Paulo Bento, cansado da refrega, do combate táctico, do esforço de orientar 11 jogadores na batalha atlética com a Irlanda do Norte. Neste ano de 1938, o antecessor de Paulo Bento chama-se Cândido de Oliveira e tem duas missões que começam exactamente no momento em que o árbitro sinaliza o fim do jogo.
Primeiro, por artes mágicas, Cândido de Oliveira terá de se esquecer que foi ele quem treinou a selecção, pois cabe-lhe ditar a crónica para “O Século” na qualidade de enviado-especial. Fá-lo certamente com o coração a sangrar. A ladainha, essa, é intemporal:
“Portugal perdeu apenas por 1 a 0.”
“Este resultado pode ser considerado honroso para a equipa portuguesa, que deu uma réplica enérgica e briosa.”
“O ponto helvético foi obtido quando o nosso grupo tinha apenas dez homens em campo.”
“Os suíços actuaram no seu próprio campo e perante 30.000 compatriotas. Há sua diferença!”
"O Século", 07/11/1938
(a partir de microfilme da Biblioteca Nacional)
O jornal reserva-lhe, porém, ainda outro serviço. Já em Lisboa, com as imagens de Leandri, Cândido de Oliveira desempenha nova função. “O Século” manda-o para o São Luís e para o Central, em Lisboa, e depois para o São João Cine, no Porto, onde o seleccionador exibe o documentário em salas de cinema e comenta as incidências do jogo, graças à distribuição da Sonoro Filmes, “casa de justo e sólido prestígio”. Suporta então estoicamente os comentários do público anónimo, que ali foi ver as imagens animadas. Ouve as perguntas. As dúvidas. As recriminações. Num rigoroso exclusivo para Portugal e Colónias.
Agora, imagine Paulo Bento no mesmo papel.

4 comentários:

Anónimo disse...

Não ficaria mal, neste como noutros textos sobre o Século dos Pereira da Rosa, uma declaraçãozinha de interesses do autor, reconhecendo-se como familiar, não acha?
Era mais transparente.

Gonçalo Pereira disse...

Não só ficaria mal, como seria obrigatório fazê-lo... SE, repito, SE essa ligação familiar existisse. Não existe. Não tenho qualquer relação de parentesco com a família Pereira da Rosa, proprietária de "O Seculo" da década de 1920 a 1974.
Já agora: tal como refiro episódios de "O Seculo" de Pereira da Rosa, lembro acontecimentos do tempo de Magalhães Lima e casos do período em que Silva Graça foi proprietário. Faça-me a justiça de reconhecê-lo.

Anónimo disse...

Tem a certeza?

Gonçalo Pereira disse...

Hummm... Tenho!