quinta-feira, janeiro 24, 2013

A cassete mais famosa

(Actualizado no dia 31 de Janeiro)

Em Outubro de 1996, trabalhava numa revista desportiva. Tencionávamos comprar espaço de publicidade no jornal “Record” quando nos foi dito que uma das próximas edições deste jornal diário desportivo (tornara-se diário em Março de 1995) seria bombástica. Aguardámos. A “bomba” foi publicada no dia 23 de Outubro de 1996. A edição terá vendido mais de 200 mil exemplares, mais do dobro do padrão normal desses tempos no jornal dirigido por Rui Cartaxana. O tema de capa fez correr tinta na imprensa nacional e colocou especialistas e leigos a discutir os limites do off-the-record com a irracionalidade própria de um Sporting-Benfica.















[peça reconstituída pelo Vasco Martins a partir das digitalizações do blogue dragaodoente.blogspot.com]

Ao longo de cinco páginas, o “Record” publicava declarações de António Oliveira, treinador do Futebol Clube do Porto, proferidas no dia 9 de Outubro perante oito jornalistas no átrio exterior do Departamento de Futebol do Estádio das Antas. Eram eles Trindade Guedes (RR), Teófilo Fernando (TSF), Carlos Júlio Lopes (RDP), João Ricardo (TVI), Jorge Monteiro e Manuela Brandão (O Jogo), José Carlos Sousa (A Bola) e Vítor Pinto (Record). Sete destes jornalistas consideraram que as declarações exaltadas do treinador estavam protegidas pelo acordo de confidencialidade estabelecido entre a fonte e os jornalistas; o oitavo – nunca desvendado uma vez que o “Record” não confirmou se fora o seu profissional a gravar as declarações – considerou que existia interesse público na divulgação das palavras de Oliveira.
No próprio dia 23, na RTP, o jornalista Teófilo Fernando reconheceu que a conversa tivera lugar e durara largas dezenas de minutos, mas notou que todos os jornalistas perceberam “perfeitamente que as declarações não eram para ser usadas. Era vontade dele [Oliveira] que isto não fosse público”.
Discordando, o “Record" decidiu que a cassete com a gravação das palavras de António Oliveira tinha relevância jornalística e, por opção editorial, transcreveu ipsis verbis todo o diálogo.

AS DECLARAÇÕES
A exaltação de António Oliveira começara na véspera, na sala de imprensa do Estádio das Antas. Exaltado com aquilo que considerava ser a campanha constante do “Record” e da SIC contra si, Oliveira descompôs um jornalista que lá se encontrava destacado, por sinal um velho colega e amigo, com várias décadas de actividade profissional.
No dia seguinte, depois do treino, o técnico voltou ao mesmo registo, embora o jornalista em causa não estivesse no local. Perante os repórteres atónitos (mas coniventes), confessou a sua participação na “maior fraude do futebol português”, a falsa inscrição do jogador congolês N’Dinga (V. Guimarães) na Federação Portuguesa de Futebol em 1987. A ter sido conhecida em tempo útil, a fraude teria salvo a Académica de Coimbra da despromoção, relegando o clube vimarenense em seu lugar na época 1987/88. Oliveira assegurava aos jornalistas possuir no seu cofre o carimbo utilizado para forjar a inscrição do jogador (fornecido, segundo ele, pelo empresário Valter Ferreira) e reconhecia que se remetera ao silêncio como treinador da Académica, sofrendo a despromoção sem relatar o caso de que tinha conhecimento (Oliveira começara a temporada no Vitória de Guimarães e ali permanecera até à 17.ª jornada).
O rastilho para o longo discurso do treinador em 1996 fora o recente apelo televisivo à moral e à dignidade de Pimenta Machado, presidente do clube minhoto entre 1980 e 2004.
O discurso do treinador revelava igualmente ameaças directas a jornalistas do “Record”, de “A Bola” e da SIC, particularmente a Rui Cartaxana, director do primeiro, a quem Oliveira acusava de plágio intelectual e de abandono dos filhos.

O RESCALDO
O “Record” considerou as declarações relevantes e decidiu que o interesse público se sobrepunha à reserva a que um entrevistado tem direito. Nunca ficou esclarecido se o treinador pediu concretamente reserva sobre as suas palavras antes, durante ou depois da conversa. Contactado pela Rádio Comercial na madrugada do dia 22, Oliveira começou por negar ter conversado com quem quer que fosse e desconhecer sequer se estava em Portugal no dia 9, mas adiantava que, se se publicasse uma conversa em off num jornal, obrigaria os intervenientes a provar que tinha proferido qualquer palavra (é provável que não soubesse então que a conversa fora gravada).
Posteriormente, à hora de almoço desse mesmo dia, já com o jornal nas bancas, argumentou na RTP que não autorizara a divulgação das suas palavras e que tivera o cuidado de pedir que todos desligassem os gravadores, pelo que se aplicaria o clássico protocolo do off-the-record, acordo implícito entre a fonte e um ou mais jornalistas, ao abrigo do qual a fonte fornece informação sob condição de a sua identidade e o seu discurso directo não serem divulgados (Cf. a este propósito o trabalho de António Fidalgo aqui)


(reprodução a partir de arquivo da Biblioteca Nacional)
Um dos primeiros agentes desportivos a relativizar o caso foi o major Valentim Loureiro, que recusou atribuir importância às ameaças de morte ou à acusação de falsificação de documentos. Nas suas palavras, reproduzidas no "Jornal de Notícias" de 24 de Outubro, "não estou a ver o Oliveira a matar ninguém (…) Com os carimbos, também me ri. Está-se mesmo a ver que o Oliveira estava a brincar".


(reprodução a partir de arquivo da Biblioteca Nacional)

Um dia depois, a 25, António Oliveira recuperava de facto o bom humor. À entrada de uma conferência de imprensa nas Antas, notou que tinha pensado em pedir uma revista pormenorizada a todos os membros da imprensa, mas abdicara da ideia, ao lembrar-se que esta conversa seria "em on".
Apesar disso, a partir do momento em que as declarações foram publicadas, o caso despoletou uma onda inédita de respostas burocráticas. O “Record” apressou-se a registar uma queixa por ameaças à integridade física e o seu director queixou-se igualmente por difamação; no FC Porto, Oliveira retorquiu, processando o jornal por difamação. Pinto da Costa ameaçava fechar as portas aos jornalistas “filhos da Pide”, como então se expressou; em Coimbra, a Académica remetia queixas para a Procuradoria-Geral da República e para a Federação Portuguesa de Futebol por danos desportivos e patrimoniais; o Vitória de Guimarães ameaçava processar António Oliveira se este não mostrasse o famoso carimbo, tal como o empresário Valter Ferreira, que dava quatro dias ao treinador para se desculpar. Escusado será dizer que todos estes processos e proto-processos produziram uma mão-cheia de nada.
Na noite de sexta-feira, dia 25, o programa de investigação da SIC "Donos da Bola" reproduziu segmentos importantes da cassete, tornando-os pela primeira vez audíveis pelo público e não apenas reproduzidos em letra de imprensa. Em estúdio, o treinador/empresário Valter Ferreira desafiou António Oliveira a provar o que alegara, sob risco de lhe pedir uma indemnização por danos morais.  


(reprodução a partir de arquivo da Biblioteca Nacional)

A Académica percorria então o calvário judicial, iniciado em 1993, com um processo contra a Federação Portuguesa de Futebol. Perdera o caso na primeira instância. Em Março de 2001, o Tribunal da Relação de Lisboa deu razão ao seu recurso, mas a sentença seria revogada dois anos depois, em Julho de 2003, pelo Supremo Tribunal de Justiça (Cf. o acórdão aqui).

A AUTORIA
Apenas um órgão de comunicação ousou sugerir a autoria da gravação ilícita. Foi o "Jornal de Notícias", na sua edição de 25 de Outubro. Pela pena de Eugénio Queirós, o diário portuense atribuiu a escuta ao jornalista do "Record", Vítor Pinto, comentando igualmente que este e o seu jornal estavam sujeitos, se condenados, a uma pena de até um ano de prisão ou 240 dias de multa por gravação não autorizada, um crime previsto no artigo 199 do Código Penal.


(reprodução a partir de arquivo da Biblioteca Nacional)

Eugénio Queirós escreveu: "Quanto à forma como foi obtida a gravação, o JN está em condições de informar que quem a fez chegou atrasado ao local da conversa e guardou o gravador num saco colocado estrategicamente nas costas de António Oliveira, tendo já negado, peremptoriamente, esse acto." O texto estava incluído numa notícia sob o título: "Jornalista do 'Record' arrisca-se à pena de um ano de prisão." Na citada conversa de Oliveira com jornalistas, estava apenas um repórter do "Record" – Vítor Pinto.
Na Travessa dos Inglesinhos, em Lisboa, sede da redacção do jornal, caiu mal o artigo do "Jornal de Notícias". No dia 26, o diário portuense publicava um esclarecimento confuso de Rui Cartaxana. Dizia o director do "Record": "Venho reafirmar-lhe a minha indignação e solicitar-lhe um desmentido formal à notícia (…) Ainda que sem referir o nome desse jornalista, o autor da notícia deixa as pistas suficientes para que qualquer pessoa minimamente atenta identifique o alvo das suas intenções. (…) Posso assegurar-lhe que o jornalista do 'Record' em questão, Vítor Pinto, não fez qualquer gravação das palavras de António Oliveira."


(reprodução a partir de arquivo da Biblioteca Nacional)

A CONCORRÊNCIA
Nos concorrentes da imprensa desportiva, a avaliação do “Record” (que, aliás, motivara quinze dias de discussão no seio da redacção) foi aceite com reservas. “A Bola” criticou moderadamente os métodos do seu concorrente, mas não teve pejo em utilizar abundantemente o material produzido pela “entrevista” para reatar o caso N’Dinga que aliás fora inclusivamente manchete do jornal em 1990. Em Novembro desse ano, o jornalista Manuel António publicara informação sobre a falsificação de documentos, com prejuízo da Académica. A aparente falta de sustentação da peça, porém, levara a uma condenação do jornalista e do director Vítor Serpa no tribunal de primeira instância. O novo elemento produzido pelo “Record” fortalecia o recurso apresentado pelo jornal.
Em Agosto de 1995, “A Bola” tomara igualmente conhecimento das palavras do empresário Manuel Barbosa, então em litígio com Pimenta Machado, que acusara novamente o Vitória de falsificação documental. Nenhuma destas reportagens fora suficiente para a justiça desportiva actuar.
Já o jornal “O Jogo”, sediado no Porto e propriedade da família do próprio Oliveira, fez manchete com a frase “Filhos da Pide”, reproduzindo a expressão de Pinto da Costa e defendendo sem reservas a tese de que a recolha não autorizada de imagens ou palavras configurava um regresso aos tempos da ditadura.
Com esta distância temporal, vale a pena igualmente referir o que escreveu a “imprensa de referência” sobre o caso. Logo no dia seguinte à divulgação do caso, no “Diário de Notícias” (curiosamente hoje na posse da família Oliveira), António Matos preferiu não se pronunciar sobre a admissibilidade da conversa, mas sim sobre o jornalismo de militância que, segundo ele, se praticava nos clubes de futebol: “É inacreditável que jornalistas tenham assistido impávidos a um discurso dessa natureza. E isso só é possível, porque os clubes (...) dividem os jornalistas em amigos e inimigos. E alguns que se apresentam como jornalistas mais não são – e os clubes sabem-no – do que pseudo-jornalistas e embarcam nisso.”
No “Público”, José Manuel Fernandes (ignorando então que, treze anos depois, teria igualmente em mãos um caso de perigosa convivência entre uma fonte e um jornalista) arengou: “Uma conversa daquele teor só foi possível, porque existe um clima de concubinato entre alguns jornalistas e alguns meios desportivos (...). Trata-se, frequentemente, de um ambiente de ‘amigalhaços’, onde tudo é possível (...). Neste ambiente viciado – e minado de fervores clubísticos –, começa também a ser difícil distinguir onde termina o direito à informação, à reportagem, à investigação e à crítica e começam as campanhas.”
E, no fim-de-semana, no “Expresso”, Fernando Madrinha acusava igualmente: “Os termos da referida conversa, tal como veio reproduzida (...), presumem um grau de cumplicidade que não é suposto existir entre qualquer fonte e um grupo tão numeroso de jornalistas.”
Em sentido contrário da confraria, enveredou Miguel Esteves Cardoso, director de “O Independente”, que criticou a prática do off-the-record, que “serve para manipular os jornalistas, tratando-se de um método infalível de passar informação (verdadeira ou falsa) sem responsabilidade” [crónica reproduzida na íntegra em baixo].


(reprodução a partir de arquivo da Biblioteca Nacional)



Provando o carácter explosivo do caso, a Lisgráfica, tipografia onde o "Record" era impresso, teve de ser evacuada na noite de 24 para 25 de Outubro por força de uma ameaça de bomba. E o jornal atravessou um longo calvário até os seus profissionais voltarem a ser admitidos no clube portuense.


(reprodução a partir de arquivo da Biblioteca Nacional)

O caso foi naturalmente irresistível para os cartoonistas. Um dos melhores, Carlos Laranjeira, do "Record", perpetuou o momento de indiscrição de António Oliveira nesta caricatura brilhante.

Site Record.pt


O SINDICATO DOS JORNALISTAS
No próprio dia da publicação, Óscar Mascarenhas, presidente do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas, criticou violentamente o “Record” e a Rádio Comercial, julgando incorrectamente que a estação emitira trechos da conversa (na verdade, ouvira apenas reacções dos visados). No Fórum da TSF, Mascarenhas acusou o jornal de ter participado n’“um dos casos mais vergonhosos do jornalismo português”, lembrando o carácter “sagrado do off”. Ao longo dia, pronunciou-se em vários fóruns no mesmo registo, lamentando a “quebra ética”, embora atenuando o potencial “histórico” da alegada infracção. Por admissão do próprio, foi emitindo opinião sem ter ainda falado com os intervenientes ou com os colegas do Conselho Deontológico.
No dia 24, o Sindicato emitiu um comunicado, penitenciando-se pela extensão da crítica à Rádio Comercial, mas insistindo que o jornal desportivo cometera um acto ilícito — se não ilegal, pelo menos deontologicamente incorrecto. A rapidez da acusação espantava o mundo académico. Celeste Natário, docente da cadeira de Legislação e Ética da Escola Superior de Jornalismo do Porto, dizia-se surpreendida pela reacção imediata do Sindicato, que lhe pareceu "muito radical, de imediato" (JN, 25/10/1996).
Numa prática inédita, o responsável pela deontologia do Sindicato deslocou-se ao Porto, reuniu com Pinto da Costa e António Oliveira e sensibilizou o presidente do clube para não decretar um black-out a todos os órgãos de informação. Por iniciativa própria, os jogadores do FC Porto decidiram no entanto boicotar qualquer conferência de imprensa em que participasse o jornal.
Também no Porto, o advogado Cal Brandão, especializado em processos associados à liberdade de imprensa, não poupou nas palavras. Nas páginas do "Jornal de Notícias" do dia 25, sugeriu: "Se eu pertencesse à Comissão de Ética do Sindicato dos Jornalistas, ferrava uma porrada no jornalista que fez isto."
O “Record” não tardou a ripostar. Pela pena de Rui Cartaxana, acusou Mascarenhas de seleccionar os casos em que se deixava chocar e de considerar absoluta a prática do off, aceitando-a sem reservas, mesmo quando o interlocutor admitia participação num crime. 


(reprodução a partir de arquivo da Biblioteca Nacional)

Três anos depois, as feridas ainda não tinham sarado. Em artigo publicado no “Record” de 30 de Novembro de 1999, João Marcelino escrevia o seguinte.

Site Record.pt

EPÍLOGO
Enquanto Rui Cartaxana e João Marcelino (respectivamente, director e chefe de redacção do jornal) se mantiveram nos seus cargos, António Oliveira não voltou a falar para o jornal da Cofina. Hoje, curiosamente, com relações reatadas, é colunista regular do jornal.
João Marcelino foi director do “Correio da Manhã” e é agora o responsável do “Diário de Notícias”. O provedor do leitor é, desde a morte de Mário Bettencourt Resendes, Óscar Mascarenhas.
Nenhum das queixas criminais teve sequência concreta na justiça desportiva ou criminal.
Nunca se confirmou o nome do jornalista que gravou a famosa conversa, que era em off, mas ficou em on.

sexta-feira, janeiro 18, 2013

A Gorongosa em 1910: espelho de um novo olhar sobre o espaço natural

Na pesquisa arquivística, nem sempre se sabe o que se procura, mas a triagem tem de ser exaustiva, como uma peneira, para não deixar escapar nenhuma ponta solta. Por vezes, porém, sucedem golpes de sorte. Foi o que me aconteceu. Peneirava a colecção da revista "Serões", publicação semanal editada em Portugal entre 1901 e 1911 e disponibilizada pela Hemeroteca de Lisboa, em busca de pistas sobre outro tema, quando acabei por encontrar uma pequena "jóia", que desconhecia e agora partilho.
Trata-se de um artigo, publicado no n.º 64 da revista, de Outubro de 1910 (precisamente o mês da implantação da República) e dedicado à Gorongosa em Moçambique. Partilho aqui algumas conclusões de uma leitura crítica sobre este artigo.


(reproduzido a partir de arquivo da Hemeroteca Digital)

A GORONGOSA
A região, hoje classificada como Parque Nacional e alvo de um intenso e apaixonante trabalho de recuperação na última década e meia, começou por ser, nos últimos anos do século XIX, uma zona de caça "informalmente administrada" pela Companhia de Moçambique. Em 1910, à data do artigo, era visitada com regularidade por caçadores anglófonos (ingleses, sul-africanos e americanos), interessados em testar a sua perícia na caça a algumas das espécies mais emblemáticas de mamíferos africanos.
A partir de 1920, a Gorongosa tornar-se-ia formalmente uma Reserva de Caça e assim permaneceu até 1960, ano em que a administração colonial a classificou como Parque Nacional. Fortemente afectada pela guerra civil, que praticamente aniquilou os grandes mamíferos do Parque, a área protegida tem vindo a ser reconstruída pelo governo moçambicano e pela Fundação Greg Carr, mostrando sinais entusiasmantes de recuperação de habitats e efectivos populacionais, aliados a um movimento de integração das aldeias locais na gestão e protecção do parque. A caça é hoje interdita no Parque Nacional da Gorongosa.
(reproduzido a partir de arquivo da Hemeroteca Digital)

O ARTIGO
O texto da revista "Serões" é assinado por Gustavo Bívar Pinto Lopes, um dos administradores da Companhia, radicado na Beira há dez anos. O tom não deixa espaço para dúvidas: é um convite à caça. Ao longo das seis páginas, descrevem-se as espécies disponíveis, num dos inventários faunísticos mais completos da primeira metade do século XX para esta região. O texto comenta as facilidades logísticas da região, sublinhando a sua proximidade da costa e do porto da Beira, a elevada concentração faunística e diversidade de troféus de caça disponíveis e a vantagem do acesso privilegiado a grandes concentrações de animais sem ter de percorrer centenas de quilómetros. Subjacente a todo o artigo, está uma perspectiva turística, uma comparação da oferta da Gorongosa face a destinos semelhantes no Quénia, na África do Sul e na Tanzânia.
Bívar apela ao leitor português, "bastante rico para poder gastar as centenas de mil reis precisas" e que possa "dispor dos três ou quatro meses indispensáveis" para caçar. É certo que não seriam muitos no Portugal da viragem do século, pois Bívar termina o texto referindo que, em dez anos de trabalho na Gorongosa, ouviu um único visitante falar português e esse era D. Pedro, o príncipe imperial do Brasil.
No entanto, o texto — publicado numa revista conhecida pelas suas ilustrações e fotografias vistosas e que circulava junto das classes abastadas de Lisboa e Porto – apelava ao aventureirismo fidalgo, seguramente cansado das batidas às lebres e perdizes do território continental e interessado na adrenalina da caça grossa.
Que eu saiba, as fotografias aqui publicadas constituem as mais antigas imagens conhecidas da Gorongosa.

(reproduzido a partir de arquivo da Hemeroteca Digital)

O CONTEXTO DA ÉPOCA
Socorro-me do extraordinário estudo do norte-americano Gregg Mitman ("Reel Nature", 1999, University of Washington Press) para documentar o importante momento de transição em que este artigo se insere, no quadro da evolução de valores, do desenvolvimento científico e tecnológico e da relação das culturas ocidentais com a vida selvagem. Mitman estudou os filmes de natureza, mas as suas conclusões são suficientemente abrangentes para abarcar também o texto e a fotografia.
Na transição do século XIX para o século XX, o espaço natural deixa de ser imaginado como vazio e inútil. Na paisagem inóspita, o homem oitocentista via o território a explorar e a desbravar, numa incessante aposta na humanização de toda a paisagem, que só ganha valor quando é transformada numa fonte de receita. A conquista do Velho Oeste americano é o melhor paradigma dessa imparável transformação do espaço natural, que urge civilizar, dotar de tecnologia ou explorar comercialmente.
Aos poucos, na viragem do século, o espaço natural vai sendo construído com outros valores. Ele é louvado pelo que é, não pelo que pode vir a tornar-se. A criação dos primeiros parques naturais nos Estados Unidos – frequentemente citada como a melhor ideia legada pelos EUA ao mundo – é o momento decisivo nessa nova perspectiva, refinando o gosto pela paisagem e atribuindo uma dimensão diferente ao acto da exploração. Explora-se agora o território bravio, não para o transformar, mas para mostrar que ele também é vencido pela abnegação humana. A caça grossa e a busca de novos e imponentes troféus inserem-se nesta modificação ideológica.
Pode até ser argumentado que o culto naturalista pelos grandes espaços abertos, naturais, de paisagens e fauna exótica até perder de vista dá aqui os primeiros passos num movimento que gerará, nas décadas seguintes do século XX, o ambientalismo e o seu ênfase na recuperação de espaços naturais perdidos e espécies devastadas.
Mitman coloca o filme de 1909 sobre as campanhas venatórias de Theodore Roosevelt como marco fundamental desta transição. O ex-presidente norte-americano organizou então uma expedição à África Oriental e teve o cuidado de se deslocar com operadores de câmera, que registavam para o público urbano, sedento de emoções, um novo compromisso com o espaço bravio. Esses filmes pioneiros tentavam mostrar uma experiência da natureza incólume, "o bálsamo terapêutico para curar os efeitos debilitantes da vida urbana", o derradeiro local de elegância, graça e autenticidade, muitas vezes construído como lugar onde ainda se notava o dedo de Deus.

(reproduzido a partir de arquivo da Hemeroteca Digital)

A NATUREZA COMPLEXA DA CAÇA
Nessa evolução conceptual do espaço natural, a caça nunca deixou de ser fundamental. Roosevelt foi um naturalista amador, um conservacionista inveterado (no seu mandato presidencial, classificou 53 refúgios de vida selvagem, parques, monumentos nacionais e reservas florestais), mas foi igualmente um caçador imparável. A sua campanha africana terá chacinado uma média de 40 animais por dia, numa quimera desenfreada para dotar os museus americanos de espécimes para as suas colecções. A sua espingarda abateu seis raros rinocerontes-brancos, entre muitas outras espécies. O público, porém, via-o em película, de câmera – e não de espingarda – na mão.
Uma discussão filosófica atravessava nesta época o mundo da caça nos países anglófonos. Homens como Roosevelt esforçavam-se por cunhar normas regulamentares para a caça desportiva, apoiando legislação restritiva face a algumas espécies ou em períodos essenciais da ecologia de alguns animais e impondo códigos de conduta "nobre" no acto da caça. A sua acção procurava separar-se da caça-chacina, que massacrava animais pelo lucro, dessacralizando a natureza e transformando-a em mais uma extensão da actividade comercial.
É nesse esforço identitário que o artigo de Bívar Lopes se insere, em 1910. Na ideologia da caça como desporto, a modernidade amolecera  moral e fisicamente os homens das classes abastadas urbanas. Era na dureza do campo, do espaço bravio, do confronto físico com ursos-polares no Árctico, leões em África ou tigres na Índia que homens como Roosevelt sonhavam recuperar as virtudes revigorantes dos pioneiros. A caça em locais como a Gorongosa foi construída assim como uma missão espiritual ou, como Aldo Leopold escreveu, o espaço selvagem foi o material em bruto a partir do qual o homem fabricou o artefacto a que chamámos civilização.
Feita com balas ou, mais tarde, com fotografia e filme, a revisita do espaço bravio foi essencial para modificar a consciência urbana sobre o território natural, construindo uma ideologia ficcional – mas eficaz – na qual se conjugaram a necessidade de conservação da natureza com a prova moral associada ao confronto com "os animais ferozes" de que fala Bívar.
Repare na legenda que acompanha a fotografia da página 271. O caçador, orgulhoso, descansa a espingarda, enquanto a seus pés jaz um leão abatido. A legenda resume a cena: "Vencedor e vencido."

(reproduzido a partir de arquivo da Hemeroteca Digital)

(reproduzido a partir de arquivo da Hemeroteca Digital)

Adenda: diz-me o Vasco Galante (PN Gorongosa) que, pelo menos na obra de Frederick Findlay, "Big Game Shooting and Travel in South-East Africa", datada de 1903, há fotografias mais antigas da Gorongosa. Fica feita a correcção.

quinta-feira, janeiro 17, 2013

A visão de Quino


No mundo laboral satírico do argentino Quino, há três tipos de trabalhadores/funcionários: os potentes, os prepotentes e os impotentes. Dos primeiros, pouco há a dizer. Formatam o mercado de trabalho e a legislação à medida das necessidades ou vontades de momento. Não perdem tempo a pregar doutrina pela cadeia laboral abaixo e raramente estão em contacto com aqueles que sentem os impactes das suas medidas. Vivem numa redoma, dentro de um círculo de giz como o de Brecht. Quino retrata-os frequentemente como nesta caricatura – de tal maneira poderosos que extravasam os limites da vinheta e deles vemos apenas fragmentos. As avenidas que frequentam não são perturbadas pela miséria que provocam. Essa é-lhes poupada, permitindo-lhes construir uma realidade artificial de luxo e privilégio que começam a tomar por generalizada.
No fundo da cadeia, estão os impotentes. Empurrados, pressionados, frequententamente representados sob o peso de um rolo compressor que os esmaga sem piedade, sem sequer lhes explicar as causas da tempestade que os afasta do cais e que lhe vai moldar o resto da vida. São impotentes perante a lei, impotentes perante a empresa, impotentes perante o governo, impotentes perante as forças da lei, que os deveriam defender, mas que os oprimem. É raro que Quino os represente em qualquer fase de tomada de consciência que signifique combate. Na sua perspectiva, os impotentes resignam-se, aceitam o seu destino, tristes, carecas, com as mãos envergonhadas sobre o colo, submissos como os servos da gleba.
A atenção e raiva do autor argentino são direccionadas para o meio da cadeia, onde se encontram os prepotentes. É deles o poder de transformar o mundo, encaixados entre os tiranetes do poder e a arraia miúda, mas Quino vê neles o pior da condição humana. Não têm verdadeiro poder, excepto para pôr em prática a doutrina de cima. São implacáveis com os fracos e submissos com os fortes. Tiram com facilidade o casaco para que os potentes o pisem e não tenham de se sujar na imundície reinante, mas, quando dispõem de oportunidade, direccionam a frustração para quem está imediatamente abaixo na cadeia de produção, vingando a humilhação com humilhação.
Quino constrói o mundo laboral como uma correia de distribuição, repleta de etapas intermédias que permitem ao potente decisor nunca encontrar o impotente afectado pela suas decisões. Nunca suja as mãos; nunca lida com a miséria que provoca. E fica genuinamente surpreendido quando pressente que, à sua volta, na vida real, a sua visão do mundo não é partilhada.

quinta-feira, janeiro 03, 2013

Projecto Genographic


Não tenho a certeza se será uma boa notícia, mas cá vai. Há alguns meses, fiz o teste Genographic, um tremendo projecto da National Geographic sobre a origem genética da população mundial. Os resultados chegaram agora. 
Entre muitas outras informações, recebi este dado: 1,8% do meu DNA é de Homo neanderthalensis e 2,8% de Denisova hominins. A minha mulher discorda. Ela diz que deve ser muito mais do que isso!

O projecto baseia-se na entrega voluntária de um kit para recolha de material genético, de acordo com salvaguardas de protecção de dados e anonimato se o participante assim o entender. Funciona tal qual o kit forense que vemos nas séries policiais. Um cotonete para esfregar o interior da boca recolhe  material suficiente para teste genético, que é enviado por via postal para os laboratórios do Genographic.


Com essa matéria-prima e graças ao contributo de várias centenas de milhares de participantes em 140 países, a equipa do Genographic já dispõe de um volume de dados que permite co-relações entre os dados do recém-chegado ao projecto e os dados das várias populações ali representadas. No meu caso, por exemplo, permitiu comparar os meus marcadores genéticos com o valor-padrão assumido para cada área regional do globo. Concluiu-se assim que a maior herança genética no meu DNA é mediterrânea (notem que o projecto não sabe de que país veio a amostra em causa e só saberá se o participante o autorizar).





Com esses dados, é possível avançar mais um passo. Se o meu perfil partilha mais de 50% de património genético com as populações mediterrâneas, é possível tentar encontrar na base de dados do projecto a população nacional com herança genética mais parecida com a minha. Apurou-se então que a minha primeira população de referência é a grega. Sem surpresa, a segunda população de referência é ibérica.





Por fim, o projecto dá o último passo. Retrocedendo geração a geração, procura o rasto das migrações dos meus antepassados, assumindo – como hoje a história e a genética assumem sem receio – que todos descendemos de uma população originalmente africana que abandonou o continente em vários fluxos migratórios. Obtém-se assim o mapa dessas migrações relativo a cada indivíduo. O meu foi este. Sugere que são estes os ramos de progressão da linhagem humana da qual eu – e o leitor – descendemos.




Acompanhe as notícias do projecto, descubra o que vai evoluindo e, se quiser investir algum dinheiro, descubra também os seus marcadores genéticos de referência aqui.